sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sou educado, digo obrigado.

Agradecer é preciso, sabem?

O portão de acesso à Terra da Sobriedade é aberto mais vezes do que o habitual em meados de agosto. No mês em que se comemora o aniversário de Ronaldo Viana, idealizador e superintendente técnico da organização - eleito pai dos que passam por lá-, é comum que ex-hóspedes da casa, seus parentes e amigos venham à Comunidade para trazer abraços, notícias, experiências...

Esse fenômeno de visitas que acontece há alguns anos, disperso ao longo do mês, apontou os contornos do que, em 2010, passou a ser chamado “o encontro da gratidão”, para o qual todos os ex-hóspedes da casa são convidados. Em 2008, a primeira experiência de reunir aqueles que viveram na Comunidade tornou clara a importância do retorno a ela.

Além de uma boa oportunidade para matar as saudades e fortalecer a amizade com a família e os companheiros de recuperação, o reencontro ultrapassa o campo afetivo e significa mais para os ex-pacientes e para a equipe técnica da Terra. O acompanhamento clínico do dependente químico continua após seu desligamento da Comunidade. Carolina Couto, coordenadora da Terra, destaca que o reencontro “é uma forma de refazer o compromisso com a própria recuperação”.

O “Dia da gratidão” favorece uma avaliação pós-alta e em longo prazo, sistematizada através de um questionário preenchido pelos ex hospedes. O formulário busca resposta para uma pergunta: como está o indivíduo depois de ter se desligado do tratamento. Os dados levantados servem para orientar a equipe técnica quanto à melhor maneira de realizar o acompanhamento do dependente químico após o término de seu tratamento na Comunidade Terapêutica.

A importância clínica da comemoração também é destacada por Ronaldo Viana, para quem “o reencontro possibilita uma renovação desse compromisso – de assumir uma nova vida” – e que “quando a pessoa se desliga daqui, simbolicamente, é como se ela tivesse retomado 100% de sua independência, mas, na realidade, o processo de reintegração social é progressivo, exigindo a manutenção do tratamento em outros níveis, como a participação nos grupos de mútua-ajuda e atividades como esta.”

Voltar à Casa é “trazer para as pessoas que estão em tratamento o apoio que você já recebeu um dia”, lembra Ana Luiza Viana, a “mãe” dos que passam pela Terra da Sobriedade. “Aqueles que retornam trazem aos atuais hóspedes as experiências do enfrentamento da vida ´de cara limpa` e a esperança da reconquista de uma vida sóbria e feliz; e os que estão com dificuldades de se manterem sóbrios, podem encontrar, no convite e na visita, uma nova oportunidade de aproximação e reintegração aos propósitos do tratamento”,completa.

Exercitar a gratidão é parte da recuperação da dependência química, como sugere o 12º passo dos programas para alcoólicos e narcóticos anônimos, segundo o qual o adicto deve levar a mensagem de que a sobriedade é possível àqueles que a buscam. “É um privilégio responder a um apelo por ajuda. Nós, que já estivemos no abismo do desespero, sentimo-nos afortunados por ajudar os outros a encontrarem a recuperação”, sinaliza o estudo do passo.

O que a equipe técnica da Terra entende por gratidão foi comprovado pela presença de muitos dos ex hóspedes, que, emocionados, deram depoimentos abertos sobre a importância do tratamento familiar que receberam durante sua estadia na Comunidade.

O “encontro da gratidão” coincidiu com o aniversário de Leidna Nunes,uma ex paciente que, entusiasmada, chegou à Terra antes do horário previsto para conduzir a preparação do almoço, e, enfática, diz que ‘gratidão é sempre pedir a Deus por aquelas pessoas que nos ajudaram”.

Outros conceitos para esse sentimento foram demonstrados ao longo do dia 15 de Agosto. Daves Dimys disse ser tímido, mas não veio de Timóteo com sua mãe para ser discreto no agradecimento. Subiu em uma cadeira ao lado de Ronaldo e, diante de 108 pessoas, deu o recado que muitos trouxeram: obrigado, existe vida após as drogas.

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Deixa a Rita falar!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Costurando aulas de comunicação.

A dimensão simbólica da vida ganha proporções juliopintescas-peircianas no tratamendo da co-dependência que acontece na Terra da Sobriedade. Há cerca de dois meses, as tradicionais partilhas em que desabafos, conselhos e reflexões orientados por uma médica, uma assistente social e uma psicóloga foram 'substituídos' por tardes de costura.


É quase assutadora a idéia de que, quando uma mãe procura orientação sobre como ajudar seu filho a se curar do vício, ela é convidada a sentar-se, tomar agulha e pano nas mãos para costurar. O suspiro de alívio só pode ser dado quando se lembra que este grupo é para cuidar dos co-dependentes - os parentes e amigos de D.Q.'s que, de alguma forma, adoeceram na relação com eles, adotando comportamentos que, no lugar de ajudá-los na recuperação, contribui para que permaneçam usando drogas.

A proposta da equipe clínica responsável por orientar os co-dependentes era de costurar uma colcha de retalhos - aquela heterogênea colcha que mais habita o imaginário coletivo do que os armários. Nada mais adequado, se é na consciência que as mudanças mais desejadas se operam.

Os grupos de mútua ajuda têm uma literatura específica que subsidia suas reflexões. Parte delas provêm do Programa Amor Exigente - uma adaptação de propostas norteamericanas criadas para orientar familiares de dependentes químicos - acrescida de dois 'passos', que, se seguidos, prometem uma vida mais serena, especialmente quando o olho do furacão está deitado no quarto do seu filho.

Em setembro, a literatura tratou de 'grupo', e, em outubro, de 'cooperação'. Costura daqui, amarra dali, a equipe clínica entendeu que uma colcha de retalhos poderia materializar as idéias trabalhadas - mas com reservas, como explica a psicóloga Kátia Marra. "O desafio é mostrar que o importante são os sentimentos ao longo do processo, não o retalho construído."

Ainda segundo a psicóloga, “a idéia de construir uma colcha é de costurar retalhos aparentemente desconectados de modo a construí-la como um todo harmônico. Paralelamente, propiciar aos participantes a oportunidade de conviver com a diversidade, exercitar a projeção e identificação, superar conflitos, talvez construir parte de sua história, ou reproduzi-la.”

Aí, os conflitos se tornam tão palpáveis quanto o tecido. Os participantes com poder aquisitivo mais alto não querem seu retalho ao lado dos também retalhos feitos por aqueles menos abastados (isso poderia ser chamado de retaliação?). Há quem queira dominar o destino da colcha - torná-la um troféu, uma obra de arte exposta à visitação, um emaranhado escondido, cinzas.

Segundo a psicóloga, as decisões individuais não podem ser tomadas em detrimento das coletivas. Da colcha de retalhos feita pelo grupo, será feito o que o grupo quiser: atear fogo, doar a um mendigo, à instituição, rifar, e sortear são algumas das opções.

É curioso como as idéias se comunicam, e a polifonia parece usar de alto falantes por aqui. "O abuso de drogas é um problema social", dizia ontem mesmo Ana Luiza, terapeuta ocupacional. Nesta condição, só socialmente pode ser resolvido. Voi lá!




quarta-feira, 20 de outubro de 2010

As novinhas

- Então, galera, o que vai rolar aqui?' Perguntei a algumas crianças que, mais atentas à camêra do que a mim, responderam (por representação de um único garoto): Baille Funk, sem drogas e sem violência, assim é mais legal!", disse o menino.

O garoto colou da faixa atrás do DJ em que estava escrito quase exatamente o que ele pronunciou. Me pareceu que o orgulho de mostrar que lê bem era mais necessário do que responder espontâneamente à minha pergunta - a julgar pelo nível de instrução a que tem direito onde mora, é mesmo o caso de se orgulhar.

O baile funk para crianças aconteceu na Comunidade Terapêutica Terra da Sobriedade, onde muitos dos pequenos compõem, aos sábados, o Grupo de Prevenção Meninos do Índio, em que Terapêutas e estudantes de Serviço Social ao final do curso desenvolvem com elas atividades lúdicas no sentido de orientá-las quanto à higiene, educação, comportamento...

A idéia de fazer um baile funk para crianças foi como aquelas arquetípicas que matam coelhos (é preciso pensar em algo mais ecologicamente correto!) com uma só cajadada. O dia das crianças foi no meio da semana, os pequenos moradores da favela do índio sempre falavam dos bailes que frequentam por lá, e, de acordo com a Coordenadora do Grupo, Mariana César Viana, o acesso às drogas e o exemplo de uso é fácil e farto.

“As crianças frequentam os bailes que acontecem na favela quase toda semana. E traziam muita alegria dos bailes, mas nos preocupamos com o uso de álcool – e uso entre as crianças. O uso de drogas e promiscuidade, violência e armas. Vimos a necessidade de trazer pra eles um baile que oferecesse a dança, o riso, a diversão, mas que não tivesse o uso do álcool, as drogas, a violência...”, explica a coordenadora.

As facetas de 'novinhas' e MCs são facilmente assimiladas pelas crianças, que demonstraram fluidez na festa e no entoamento das canções, que, segundo o DJ M., hóspede da Comunidade Terapêutica, foram cuidadosamente escolhidas: “Funks mais leves, como MC Martinho”, cujas letras falam de amor, de respeito aos moradores de comunidades periféricas e de histórias de vida que estavam na ponta da língua das crianças.

Classe média e desconfiado que sou, precisei confirmar a pauta. 'Essa criançada pode ser endiabrada, mas daí a sacar como funcionam os famigerados bailes funk de favela? (fluxo de consciência: Bruna Fonseca, cadê você? Eu não sei conversar com crianças...)''


- E vocês já foram em outros bailes?

- Sim! - Em coro.

- E como funciona o esquema lá?

- Lá é com drogas, com violência e tudo de mais.

Senti que a estratégia funcionou, então fui chegando perto dos grupinhos e perguntando o que ia rolar ali - pra ter a resposta que eu já sabia -, se eles já foram em outros bailes e como funcionavam em outros lugares.

Alguns foram francos, assumiram que já consumiram álcool em bailes funk, que já viram amigos morrerem em decorrência do uso (e de infindáveis consequências) das drogas. Outros, disseram que não sabiam de nada (intertexto!).

A conversa com os meninos ficou facilitada quando a festa começou - a diversão que lhes causou serem filmados por uma máquina que eu manipulava deve ter contribuído pra isso. Daí, foi porrada atrás de porrada na visão de classe média.

São crianças talentosas, sobretudo no que diz respeito à representação do contexto em que estão inseridas. Muitos dos pequenos sabem compor e musicar versos que tratam da sua realidade, e alguns se destacam entre os amigos por isso. As letras são cantadas em conjunto, em que um coro - desafinado, é verdade - chama para si as 'novinhas' e pede que Deus abençõe e fortaleça o povo da periferia.

Vale destacar: nem Justin Beiber faz tanto sucesso entre os pequenos do Meninos do Índio.







Bartenders ofereceram batidas sem álcool para as crianças


As crianças acompanham um dos pequenos MC's

Mariana Viana, a coordenadora do Grupo Meninos do Índio


sexta-feira, 24 de setembro de 2010

ser ou não ser (dependente químico)?

A conversa que se desenrolou em uma sala da Comunidade Terapêutica Terra da Sobriedade entre as terapeutas ocupacionais Ana Luiza Viana e Carolina Couto da Mata, quando questionadas sobre o que diferencia o usuário social de drogas do usuário compulsivo - ao qual a internação em clínicas de tratamento se apresenta como alternativa - deu o tom da complexidade em se afirmar se um indivíduo é, ou não, dependente químico.

Há, segundo Carolina e Ana, critérios objetivos, mas, sobretudo, importa o critério social - que implica avaliar subjetivamente a relação do indivíduo com a droga consumida e os efeitos dela decorrentes. Carolina destacou o tempo de consumo da droga como um dos fatores que é considerado na avaliação - neste momento, um interlocutor afirmou que seu irmão "fuma maconha, normal, há 25 anos", sugerindo que não era um caso de dependência química.

A observação do interlocutor faz sentido se observadas as diferenças entre o sujeito que faz uso de substâncias psicoativas, o que abusa delas, e o que mantém relação de dependência química com as drogas, segundo os pesquisadores Ronaldo Laranjeira, Selma Bordin e Neliana Buzi em seu livro "Aconselhamento em Dependência Química".

Os autores indicam que "não existe uma fronteira clara entre uso, abuso e dependência quimica. Poderíamos definir uso como qualquer consumo de substância, seja para experimantar, seja esporático ou episódico; abuso ou uso nocivo como consumo de substâncias já associado a algum tipo de prejuízo (biológico, psicológico e social); e, por fim, dependência como consumo sem controle, geralmente associado a problemas sérios para o usuário."

É necessário lembrar que os efeitos psicoativos de cada droga são diferenciados, pela própria composição química de cada uma, e pelas diferentes reações apresentadas pelos organismos. Um trecho do Livreto Informativo Sobre Drogas Psicotrópicas elaborado em parceria entre a Universidade Federal de São Paulo e o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas aponta que "os efeitos psíquicos agudos dependerão da qualidade da maconha fumada e da sensibilidade de quem fuma. Para uma parte das pessoas, os efeitos são uma sensação de bem estar acompanhada de calma e relaxamento, sentir-se menos fatigado e vontade de rir (hilariedade). Para outras pessaos, os efeitos são mais para o lado desagradável: sentem angústia, ficam aturdidas, temerosas de perder o controle mental, trêmulas, suadas. (...)"

A dependência química pode ser identificada pelo próprio usuário (e isso é condição para o tratamento na Comunidade Terapêutica Terra da Sobriedade: que o indivíduo se reconheça como dependente e que queira tratar-se). A irmandade de Narcóticos Anônimos elaborou um questionário com algumas perguntas que podem auxiliar o usuário de drogas a refletir sobre seu grau de dependência em relação às substâncias consumidas; algumas das perguntas sequer mencinonam 'drogas', e um texto que as acompanha aponta que o número de 'sim' respondido não significa maior grau de dependência - o critério, também, é subjetivo.